Estudo lançado do Dia de Combate à Intolerância Religiosa sugere aparelhamento de canal de denúncias nos anos Bolsonaro
Não era um lugar agradável de se estar, mas ano após ano adeptos de crenças afrobrasileiras permaneciam inabaláveis como as principais vítimas de intolerância religiosa no Brasil. Não mais. Dados do Disque 100, serviço do governo federal para receber casos de violações contra os direitos humanos, mostram que, desde 2020, a maioria das denúncias passou a vir de cristãos.
Não, o Brasil não virou um celeiro de cristofobia. Sim, as religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, ainda são os alvos preferenciais de discriminação por conta de fé —em boa parte vinda de evangélicos. O que aconteceu, segundo especialistas em estudos religiosos, tem outro nome: distorção de dados.
O governo Jair Bolsonaro confeccionou uma narrativa de perseguição que ajudou a inflar o número de denunciantes cristãos no canal oficial, afirmam os estudiosos.
Com lançamento marcado para este sábado (21), não por acaso o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, um levantamento do Iser (Instituto de Estudos da Religião) com o data_labe revela que cristãos agora aparecem na frente como alvos de intolerância. Entre o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022, os que procuraram o Disque 100 eram 46% católicos, 30% evangélicos, 3% espíritas e 2% afrorreligiosos. Uma parcela de 12% não especificou uma religião, e o resto se dividiu entre outras fés.
No Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, feito pela Assessoria de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa com dados de 2011 a 2015, a porção cristã (8% de católicos e 16% de evangélicos) era inferior à de quem informou ter uma religião afrobrasileira (27%). Uma em cada três pessoas não quis identificar uma crença. O estudo não foi repetido nos anos seguintes.
Estatísticas do mesmo Disque 100 contabilizam, em 2018, 506 denúncias de discriminação religiosa, entre as quais 30% vinham de religiões de matriz africana, enquanto o bloco cristão somava 13%. Metade do grupo preferiu omitir a filiação religiosa.
O ano precede a chegada de Bolsonaro à Presidência. Quando discursou na Assembleia-Geral da ONU de 2020, o então presidente fez um apelo pelo “combate à cristofobia”. A aversão a crentes em Jesus Cristo é real em vários países e provoca até assassinatos, mas residual no Brasil, onde 8 em cada 10 pessoas são cristãs.
Damares Alves, sua ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cimentou essa versão em diversos momentos, como ao postar, em 2020, a foto de uma igreja incendiada durante protestos no Chile. A pastora questionou se “ainda existem dúvidas sobre a cristofobia” e pregou: “Somos o povo que prega o amor, o respeito e a paz”.
Amor, respeito e paz inexistiram nos atentados em série sofridos por terreiros nos últimos anos, de autoria quase sempre evangélica. A violência é praticada por uma minoria do segmento, mas a demonização de crenças afro é popular em igrejas, o que colabora para um clima de desconfiança generalizada com a minoria religiosa.
Para se ter uma ideia, de acordo com o censo de 2010, 0,3% da população se identificava como praticante de umbanda ou candomblé. E mesmo assim eles sempre correspondiam à maior fatia das vítimas dos intolerantes.
Para a antropóloga Lívia Reis, pesquisadora do Iser, Bolsonaro deu legitimidade estatal à falsa trama de que cristãos brasileiros são acossados pelo que creem. “Para comprovar esse ponto, fez-se necessário que o governo estimulasse o uso de canais de denúncia entre pessoas cristãs, de modo que as estatísticas corroborassem essa narrativa.”
A alta de cristãos acionando o Disque 100 também está, segundo Reis, “intimamente ligada à forma negacionista como o governo federal encarou a pandemia de Covid-19, desencorajando medidas sanitárias de prevenção à doença, entre elas o fechamento das igrejas”. Ordens para suspender cultos foram tomadas como um ataque à liberdade religiosa.
“Houve manipulação do Disque 100, isso é óbvio”, afirma o babalaô Ivanir dos Santos, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
A má qualidade dos dados é outro problema, afirma Reis. “É uma lacuna que precisa ser sanada com urgência. As delegacias estaduais nas quais as denúncias são feitas muitas vezes não sistematizam dados básicos como a religião da vítima, por exemplo.”
Em alguns casos, as denúncias de intolerância são tipificadas como racismo. No caso de crenças afrobrasileiras, não deixam de ser, diz a antropóloga. “Mas ao mesmo tempo isso ajuda a invisibilizar o dado.”
São altas as expectativas sobre o novo governo, e aqui a comparação com o anterior ajuda. Para Reis, a nomeação de pessoas negras, especialmente as afrorreligiosas, na chefia de ministérios “já é um aceno importante de que esse debate não apenas será retomado, como será retomado de forma séria no âmbito federal”. A posse de Anielle Franco na pasta da Igualdade Racial e de Sonia Guajajara na dos Povos Indígenas, por exemplo, teve saudação a Xangô, o orixá da Justiça.
Para Ivanir dos Santos, a troca de um presidente que proclamava frases como “o Estado é laico, mas eu sou cristão”, ou “a minoria vai se curvar à maioria”, já é um passo de elefante. “Agora temos ministros com sensibilidade e compromisso com essa causa.”
“A liberdade de professar uma religião e a liberdade de crença, que engloba a possibilidade de não ter uma religião, são garantias constitucionais previstas inclusive nos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos”, diz o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida. “Por isso, um dos papéis fundamentais do governo brasileiro é combater a intolerância religiosa.”
O primeiro sinal veio após o presidente Lula sancionar, semana passada, uma legislação que endurece penas para crimes de discriminação religiosa. Condenados por eles terão a pena ampliada: antes era de 1 a 3 anos, agora, de 2 a 5 anos. A mudança faz parte de uma recauchutagem na Lei de Crime Racial, de 1989, e fala em “racismo religioso”.
Ivanir dos Santos só pede zelo com o cumprimento das leis que criminalizam o preconceito por motivos de fé. Do que elas adiantam se há falhas lá na ponta? “Tem problema no treinamento dos operadores de direito. Se na delegacia o policial não registra como intolerância, não vira processo.”
O caso de Juliana Arcanjo Ferreira, 34, virou, mas pela razão avessa. O Ministério Público de São Paulo a acusou de lesão corporal e violência doméstica após mãe e filha participarem de um ritual de iniciação no candomblé.
Elas passaram 21 dias juntas, no chamado quarto de santo, território sagrado para a crença. O cômodo tinha banheiro, e elas faziam três refeições fixas por dia: às 4h, um mingau, e às 12h e às 18h, arroz, feijão e carne, diz Juliana. Nos intervalos, pãozinho, biscoitos e chá.
Também integravam a liturgia pequenos cortes na pele das duas, vistos como cura no preceito candomblecista.
A maior parte do tempo elas passaram no quarto, com exceções diárias para banho. “E a mãe de santo a liberou duas vezes pra ver desenho”, conta a mãe.
O pai da menina, que segundo Juliana é evangélico, tentou enquadrá-la em cárcere privado, maus-tratos e violência doméstica. A Justiça já absolveu Juliana duas vezes, e mesmo assim ela não conseguiu reaver a guarda da filha, retirada dela em janeiro de 2021. O pai ainda recorre da decisão. Procurada, a Promotoria não respondeu.
A Folha também tentou falar com representantes da gestão Bolsonaro, como a senadora eleita Damares (Republicanos-DF). Também não obteve resposta.
O Dia do Combate à Intolerância Religiosa homenageia mãe Gilda de Ogum, ialorixá de um terreiro na Bahia alvejada pela Igreja Universal. O jornal da instituição neopentecostal publicou uma foto sua no texto “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.
A saúde de mãe Gilda andava frágil após as agressões e até uma invasão de seu terreiro que se seguiram à publicação. Ela infartou aos 65 anos e morreu no dia 21 de janeiro de 2000.